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A Realidade das Imagens

25 Aug, 22

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A ligação indexical ao real que caracteriza o cinema, tornou-se no caso do documentário a sua condição legitimadora e problematizadora, enquanto forma supostamente ‘não ficcional’ de fabricar imagens,1 ou seja, enquanto forma que produz imagens do real, da realidade do mundo num dado momento, decorrentes da capacidade única e inquietante do cinema de capturar, registar e expor automaticamente a “fisiologia da existência,” ao mesmo tempo que armazena blocos dessa experiência perceptiva da realidade para memória futura. Assim, do automatismo da imagem cinematográfica resulta a crença na sua essência documental, que por sua vez funda a nossa crença no real que se inscreveu nas imagens. A partir daqui é a relação da imagem filmada à verdade que passa a estar em jogo e os vários modos de sobre ela reflectir. De facto, a afinidade essencial do cinema com a realidade física, graças ao modo de produção automático da imagem-movimento, vocaciona-o para o registo e exposição da realidade, mas abre também o espaço para que se instale a dúvida sobre se uma tal descrição da realidade a descreve adequadamente: se por um lado, o cinema em geral e o documentário em particular trabalham com o elemento da cópia, da ‘estenografia’ da realidade perceptiva actual, com o traço deixado pela experiência de uma dada duração, e não se pode ir para lá deles arbitrariamente, como diz Alexander Kluge,2 por outro, a cópia como inscrição na imagem “do tecido complexo do [dito] mundo objectivo”3 não acontece directa e mecanicamente. Não é apenas a realidade que é descrita, mas também a relação a ela. Neste sentido, no caso do cinema de abordagem documental, a imagem é não só constitutiva da realidade que se quer retratar, como uma certa configuração para a experimentação e investigação sobre o factual está desde logo presente. O factual emerge na imagem enquadrada pela câmara, mas é investido de significações e interpretações diversas, quer com a selecção da imagem pelo realizador e sua combinação com outras imagens, quer no contacto com a experiência posterior do filme pelo espectador, por sua vez determinadas pelo que pode ser dito e visto num dado momento histórico, e também pelo que fica de fora.

1 Mesmo se a categoria da não-ficção serve hoje para qualificar uma série de manifestações artísticas e expressivas que extravasam, no interior do cinema, e para fora dele, o âmbito mais estrito do que é considerado documentário, sugerindo a possibilidade de alargar o espectro do que aí cabe a formas e experimentações que se dão no cruzamento com o cinema experimental e a arte contemporânea (cf. a este propósito o contributo de Christa Blümlinger, na Mesa redonda do presente site), aqui reenviamos para a relação desta categoria com uma definição de documentário que, histórica e pragmaticamente, se instituiu e consolidou por diferença em relação à ficção, e assentou essa diferença na oposição um pouco esquemática entre um cinema que teria a seu cargo retratar a realidade na sua actualidade histórica, sem excluir o seu “tratamento criativo,” e um cinema do imaginário, que chamaria a si “a velha arte de contar histórias.”
2 Cf. Alexander Kluge and Klaus Eder, “Debate on the Documentary Film: Conversation with Klaus Eder”, 1980, in Alexander Kluge Raw Materials for the Imagination, Ed. Tara Forrest (Amsterdam: Amsterdam University Press, 2012), 197-198.
3 Cf. André Bazin, “L’ontologie de l’image photographique”, in Qu’est-ce que le cinéma? (Paris: les Éditions du Cerf, 1958), 16; Thomas Elssaesser, “Simulation and the Labour of Invisibility: Harun Farocki’s Life Manuals”. First Published November 29, 20.

Assim, se podemos falar do documentário no sentido de uma certa conexão ao real, que é diferente da convocada pelos filmes de ficção, também podemos abordá-lo como sendo uma forma de reflectir sobre a própria natureza das imagens – o que significa fazer, produzir uma imagem?
Neste caso, mais do que com a realidade, o diálogo de cada realizador é um diálogo com imagens, imagens do presente e imagens da história. Nestas notas introdutórias, vamos partir desta constatação da ontologia da imagem cinematográfica, deste encontro entre cinema e realidade física, fundadores de uma série de considerações sobre a sua especificidade, para mais do que procurar associá-los ao documentário como prática de não-ficção, entendida nos termos acima mencionados, ligá-los a uma ideia de documentário indissociável de uma ideia mais abrangente de cinema como terreno de experimentação, onde a realidade se compõe e recompõe ao sabor da interrogação sobre e do diálogo com as imagens, em sintonia com a actualidade do mundo a cada época.

Pretende-se, então, acentuar, para as questionar, nas imagens do real associadas às práticas do documentário, as imagens e não o real, a realidade referencial e mundana para que reenviam – daí o título a realidade das imagens -, como forma de sublinhar que não existe o mero factual, que não há descrição directa da realidade, no sentido em que, e ao contrário do que pretendia a ‘tradição e concepção pseudo-científica do documentário’, a verdade não é garantida pela inscrição indicial e directa. É impossível encontrar a realidade directamente, todos os filmes assentam em pressupostos e convenções a partir dos quais se desenvolve uma certa configuração cinematográfica, que nunca coincide com as estruturas do mundo real; no sentido também, em que a verdade não é senão um momento do falso, ou seja, a realidade retratada pelo cinema é também a realidade do próprio cinema, sem que o movimento do mundo se possa distinguir do movimento das imagens; no sentido, por fim, em que fabricar uma imagem é arrancar o tema, o motivo, mais ou menos enfática e explicitamente ao seu contexto, criando-o de novo, e assumir a condição de ready-made de qualquer imagem, como afirma Hartmut Bitomsky.4
De facto, o advento do filme marca a primeira vez na História em que se podia capturar o momento, o efémero e transportá-lo. Ou seja, não só os filmes são um reflexo do seu tempo, uma prova ou evidência de que algo teve lugar, como as imagens, com as suas qualidades documentais, são como objects trouvés, materiais brutos, nem boas, nem más, que podem ser remontadas para contar uma história completamente diferente da que determinou a sua origem. Um cinema das potências do falso como diria Gilles Deleuze, a propósito de Orson Welles. É importante mencionar que o cinema deste realizador é uma ininterrupta meditação sobre o acto de criação, e a relação que este estabelece com a verdade e com a mentira, que culmina, numa obra como F for fake, 1973, na radicalização do modo como os procedimentos formais e estilísticos de Welles se passam a exibir enquanto tais, evidenciados como componentes de uma ‘falsidade’ necessária à manifestação da verdade. É um filme que, sendo um auto-retrato de Welles enquanto criador e do que foram o seus truques (também no sentido de tricks, trapaças), estende a sua auto-reflexividade ao próprio cinema, dado que Welles, ao contrário do que aparenta,

4 Hartmut Bitomsky, “The documentary world”, in Hartmut Bitomsky Retrospeckive (Goethe Institut München, 1997), 10-20. Esta consciência da actividade de filmagem como produzindo futuro material de arquivo relaciona-se com as escolhas temáticas e formais em filmes deste realizador, como Reichautobahn (1986), Der VW komplex (1989), B-52 (2001), em que Bitomsky filma ou lida com imagens de objectos, como o carocha, a auto-estrada ou o bombardeiro B-52. Por exemplo, em B-52, o escultor que aparece diz que está interessado em peças que ganham vida depois de partidas, de destruídas, que tudo pode ser usado uma segunda vez: “O que é reciclar? É retomar o material, encontrar-lhe uma segunda função, dar-lhe uma nova forma, assegurar uma nova pertença.”

5 Jonathan Rosenbaum, “Orson Welles’s Purloined Letter. F for Fake”, in Discovering Orson Welles
(Berkeley, Los Angeles, London: California University Press, 2007), 289-295.

F for fake é um filme que materializa de forma explícita (e de certa maneira, precocemente), como num manifesto, através da grande liberdade na utilização dos materiais, excertos de filmes, que são o seu arquivo de partida, as considerações sobre a realidade das imagens do cinema a que aludíamos e que são bem traduzidas por Bitomsky quando diz que as imagens não são mero material neutro, objectivo, factual intocado pelo processo de visionamento. São ao invés, o produto de uma interacção entre o visível e a imaginação do realizador ou do espectador. Assim, o material de arquivo usado nos filmes, como o próprio material original, funcionam ambos como citações, no sentido em que se trata de extrair as imagens seja da própria realidade apreendida em primeira mão pelo realizador, seja de outro filme, para as fabricar de novo com a cumplicidade do espectador. Por conseguinte, a chave para os filmes de Welles – a referência a esta chave é parodiada e tematizada no início de F for Fake – é precisamente a parte de completude da imagem que traz a imaginação da audiência e a sua activa e criativa colaboração, mesmo que involuntária e inconsciente, nos desígnios do realizador, sendo que este, qual mágico, o que nos mostra são aparências em que a verdade mais não é do que um momento da falsidade. No caso de Welles, somos nós que pomos em prática a sua magia, e somos neste sentido, como indica o genérico, bem analisado por Jonathan Rosenbaum, os verdadeiros colaboradores de Orson Welles na feitura do filme.5 E, tal como para os experts no filme, isso significa que o que sabemos a partir do que nos é mostrado, depende em parte do que nos foi escondido ou iludido à vista de todos. Qual a verdade? O que vemos ou o que se esconde sob o que vemos e que permitiu a sua visibilidade e credibilidade?

Daqui decorre a constatação do cinema e da sua prática como território de contaminações entre o valor documental das imagens e procedimentos inventivos de análise e montagem, que vão no sentido da sua reescrita ou modulação, ensaiando formas de as recompor, fazer colidir, religar e articular, desafiando visões consensuais e hegemónicas do real, ao mesmo tempo que nos fazem ver e ler nas imagens que elas são o efeito de escolhas, decisões, selecções sobre o que recortar, apropriar, conservar, retomar, que supõem igualmente o reverso – a exclusão, a obliteração, o esquecimento, a destruição.

Desde os primórdios que as práticas cinematográficas nos foram pondo face a procedimentos de constrangimento dos registos, duplicações da realidade e experiência perceptiva, numa estrutura ou narrativa de alguma espécie – sujeição desta primeira mediação a configurações abstractas ‘destruidoras’ da integridade do continuum da experiência da realidade. Basta pensar em como o nascimento do documentário, enquanto género, na sequência dos irmãos Lumière e da redução da imagem ao essencial, é indissociável da experimentação inaugural sobre os limites do cinema, em que as fronteiras entre ficção e não ficção, documentar a realidade e experimentar com a forma, mostrar e contar, narrativa e retórica eram muito ténues.

Pensemos depois no fraccionamento da realidade documental numa série de fragmentos, reconfigurados depois pela montagem, caro à vanguarda cinematográfica herdeira do modernismo (fiel, aqui, ao estilhaçamento cubista e futurista da superfície, apresentando não só as diversas faces de um mesmo objecto ou evento, mas o dinamismo de várias forças, cores, formas, ritmos, movimentos que os atravessam), ou na associação livre e ambígua de impressões, acções, gestos, na exploração de um surrealismo dos fenómenos ou de um inconsciente da matéria e do espectáculo do mundo natural e humano. De um lado, o cinema inaugural da pseudo-contradição entre criatividade da montagem e integridade do real, como o de Dziga Vertov, experimentação sobre os limites do cinema, em que as fronteiras entre ficção e não ficção, documentar a realidade e experimentar com a forma, eram muito ténues; do outro, por exemplo, o excesso de real, que a máquina inteligente, i.e., o cinema, segundo Jean Epstein, inscreve como traço de um pensamento que nos mostra, revela, aquilo que desconhecíamos da realidade e de nós próprios.

Pensemos em Robert Flaherty, tido como um dos pioneiros do cinema documental, que torna indissociáveis nos seus filmes o registo e exploração ‘da vida natural’ dos autóctones, da sua reconstituição ou reencenação (Nanook of the North, 1922, ou Moana, 1926, por exemplo).
Pensemos também no advento de “toda uma estética da objectividade” associada à criação de uma identidade do documentário, indissociável de uma função social que o cinema se atribuiu através dela, e como ela dependeu do “desenvolvimento de tecnologias organizadas da verdade,” em que “a procura do naturalismo,”6 vai de par com a organização das ‘imagens-facto’ recolhidas no mundo, em linhas argumentativas ou narrativas (em geral conduzidas e articuladas por um comentário – voz anónima ou voz da autoridade), orientadas por imperativos éticos e políticos: o documentário serve causas e defende os injustiçados, trazendo-os para a esfera da representação, mas esta ‘mediação’ é criativa e artisticamente relevante apenas na medida em que serve a construção do olhar ou ponto de vista ‘ideológico’ que é suposto exercer-se sobre eles e sobre a realidade que os torna possíveis. Ora produz um olhar alinhado com a propaganda de Estado ou institucional, em que a dita objectividade se confunde com “a capacidade de promover o que está certo e errado no mundo, o que é ‘honesto’ e ‘manipulador’ no documentário,” segundo Trinh T. Minh-ha,7 e se liga à naturalização dos ideais e valores consensuais e instituídos, para produzir filmes assentes na noção de consenso, neutros e ‘conservadores’, que não avançam tomadas de posição políticas; ora fabrica um ponto de vista desalinhado dos poderes dominantes, pondo a forma, os seus códigos e convenções em consolidação, ao serviço do activismo e da intervenção militante, para mobilizar esteticamente e transformar politicamente. No fundo, no primeiro caso estamos perante o protótipo do documentário tornado convencional, didáctico e ilustrativo, que mostra e testemunha sobre o estado das coisas e do mundo, subordinando o “tratamento criativo da actualidade”, 8 caro a Grierson, a intenções pedagógicas, de educação, esclarecimento, e de orientação; já no segundo caso, à imagem do que acontece com, por exemplo, Misère au Borinage (1934) de Joris Ivens e Henri Storck, ou The Spanish Earth (1937) de Joris Ivens, o mesmo ‘tratamento criativo’ serve para apontar novas direcções para o agir comum, o medium do documentário implicando-se activamente nas lutas políticas e sociais. O documentário é concebido e praticado aqui como vanguarda política e tomada de posição contra os governos e os interesses industriais e económicos, como colaboração com os desfavorecidos da terra e desencadeia um cinema de envolvimento participativo, feito em conjunto, que gera as próprias qualidades que se querem documentar, o sentido de comunidade, de esforço colectivo ou de causa comum, forjado no calor do conflito social.9

6 Trinh T. Minh-ha, “The Totalising Quest for meaning”, in Theorizing Documentary, Ed. Michael Renov (New York, London: Routledge, 1993), 94.
7 Trinh T. Minh-ha, “The Totalising Quest for meaning”, 94.
8 John Grierson, “The Documentary Producer (1933)”, in The Documentary Film Reader. History, Theory, Criticism, Ed. Jonathan Kahana (New York: Oxford University Press, 2016), 216.
9 Bill Nichols, Introduction to Documentary (Bloomington & Indianapolis: Indiana University Press, 2001), 149.

No entanto, se a questão política, ou seja, a justiça dos temas e assuntos abordados, não pode também aqui ser separada da sua mise-en-scène cinematográfica, a verdade é que esta última era muitas vezes o lugar de identificação da objectividade ou do objectivismo com um certo dispositivo de mostração da realidade, cujo poder dependia do seu funcionamento metonímico (a parte pelo todo): de um lado, é suposto as imagens serem o registo fiel do livre curso do próprio fluxo do real, do outro o comentário, a voz, dá conta dessa objectividade dos factos que falam por si. O que decorre destes procedimentos é a evidência de uma dramatização, de uma narração ou sentido prescrito às imagens; nos casos menos inspirados, essa dramatização e sentido são unívocos e antecipadamente previstos, feito dos clichés linguísticos e das palavras de ordem que se associam às imagens, elas próprias reduzidas, assim, a clichés visuais. O comentário, nas palavras de Pascal Bonitzer, “representa aqui um poder, o de dispor da imagem e do que ela reflecte, a partir de um lugar diverso e indeterminado daquele que a banda de imagem inscreve.”10 Nesse sentido, é um lugar transcendente que funda o suposto saber e o torna incontestável e incontestado.

10 Pascal Bonitzer, “Les silences de la voix”, in Le regard et la voix (Paris: Union Générale d’Éditions, 1976), 33.

Pensemos igualmente no esforço para emancipar o documentário do imperativo de propaganda ou de militância por uma causa, e assimilá-lo directamente à experiência da autenticidade associada ao real retratado e à matéria filmada num dado presente, fazendo sobressair assim a capacidade do
 
filme de redimir o mundo material graças à sua capacidade de replicar e retratar a experiência perceptiva na sua concretude, ao “exibir o continuum da vida, da realidade material.”11 À ideia de documentário como media de reencantamento, não apenas para mostrar os grandes eventos, mas “as últimas coisas antes das últimas,”12 aquelas que nos são imperceptíveis, que estão sob o que sabemos ou julgamos saber, as que são ignoradas ou inexistentes para os poderes (ou media) dominantes, e que vão para lá da compreensão estereotipada do mundo, vem juntar-se a convicção na possibilidade de um cinema assente na observação directa das pessoas e das coisas, à custa da imperceptibilidade do seu dispositivo. Os métodos cinematográficos, apoiados no aparecimento de equipamento mais leve, ajustam-se à procura de uma restituição dos acontecimentos próxima do que estes seriam se a câmara não estivesse presente e traduzem-se na minimização da intervenção do realizador, evitando o comentário, e privilegiando o que a câmara regista, de um modo não intrusivo.

11 Siegfried Kracauer, Théorie du film. La rédemption de la réalité matérielle, Trad. Daniel Blanchard et Claude Orsoni (Paris: Flammarion, 2010), 123.
12 Siegfried Kracauer, L’Histoire des avant-dernières choses, Trad. Claude Orsoni (Paris: Éditions Stock, 2006).

Trata-se do “deixar a câmara filmar o que lá está,” lema pelo qual ficou conhecido o direct cinema de realizadores como Richard Leacock, D. A. Pennebaker, Albert e David Maysles, que rompiam com a anterior coerência diegética, orientada ideologicamente, reinvindicando o mergulho nas realidades de filmagem durante períodos longos, e uma montagem próxima do desenvolvimento linear dos acontecimentos, como forma de limitar a influência dos realizadores sobre as situações. No entanto, eliminar as tecnologias narrativas, os procedimentos de linguagem previamente estabilizados e estilizados, e tornados marcas de reconhecimento do documentário como género, equivale no direct cinema, a uma relativa ausência de problematização do próprio aparato cinematográfico, como se procurar o mero registo – como forma de eliminar ao máximo o que no processo de filmagem pode afectar o que é filmado -, eliminasse automaticamente quer as marcas do dispositivo, quer as marcas de subjectividade; como se da sua discrição dependesse a possibilidade de se chegar a uma apreensão mais objectiva de uma dada situação; como se se pudesse transportar o espectador para cena, fazendo esquecer a mediação.

A esta ruptura com a anterior concordância entres as imagens e uma dada ‘narrativa’ da realidade, orientada pela perspectiva da consciencialização sobre os mais fracos ou pela sua transformação utópica, vem acrescentar-se uma outra, com contornos radicalmente opostos, a determinada pelo Cinéma-vérité, como primeiro movimento de um cinema reflexivo, que se caracteriza por integrar as opiniões e impressões dos sujeitos filmados sobre o próprio processo e objecto acabado, e por assim fazer passar intencionalmente a estrutura técnica para primeiro plano, bem como a discussão de eventuais pressupostos e posições ‘ideológicas’. Um cinema da ambiguidade das coisas, das realidades e personagens, em que a verdade não é a do que lá está na representação, mas uma verdade criada do encontro entre a câmara e a realidade. Um cinema de
 
fabulação, como o de Jean Rouch, de Les maîtres fous (1955) a Chronique d’un été (1961), ou o de Pierre Perrault, sobre a constituição do povo do Quebec enquanto, nas palavras de Deleuze, “acto político de fabulação:” nem documentário, nem ficção, trata-se de um cinema que, através do acto de palavra, ‘do encontro com a palavra do outro’, entra em devir arrastando consigo, num movimento transformador, o filme e a realidade e o próprio realizador – o “je est un autre,” a que se refere Deleuze, citando Rimbaud. 13

13 Gilles Deleuze, Cinéma 2. L’image-Temps (Paris : Les Éditions de Minuit, 1985). 197-199.

O aparecimento do digital veio acentuar e introduzir novos contornos neste cinema não só da mise en scène da palavra, mas de certo modo performativo da experiência, da encenação dos corpos e dos gestos, a rejeição da tendência observacional do documentário fazendo-se agora acompanhar de uma dobra extra de suspeição na relação ao real; a perturbação das fronteiras entre documentário e ficção, verdade e encenação, caras ao filme-ensaio, surgem como formas paradigmáticas que melhor traduzem este abandono da proclamação da evidência e a sua substituição por um acesso à realidade por intermédio do artifício (ou seja, através de estratégias de re-encenação, da criação de docu-dramas, sublinhando e exacerbando a dimensão performativa e subjectiva do discurso documental tradicionalmente identificado com a objectividade e a não intervenção). No fundo podemos afirmar, acompanhando Jean-Louis Comolli, que não se trata de mais do que revestir de novos contornos, radicalizando-a, a tensão entre realidade e imagem, crença na realidade e crença na imagem, que está presente no cinema desde sempre.14 É assim que o ‘novo documentário’, tal como o cunhou Linda Williams,15 abandona a pretensão à evidência, à prova, trocando o facto pela ‘verdade extática’, tal como a concebe Werner Herzog – uma verdade mais profunda do que a exigida pela observação da realidade, acedida apenas pela “fabricação e imaginação.”16

14    Cf.    Jean-Louis    Comolli    et    Avishag    Zafrani,    “Mouvement/arrêt–cinéma     et    pensé. Entretien”, Cités no. 77 (2019/1): 33-42.
15 Cf. Linda Williams, “Mirrors without Memories: Truth, History and the New Documentary”, Film Quarterly 46, no. 3 (Spring 1993): 9-21.
16 Cf. a este propósito Erika Balssom. “The reality-based community”, in e-flux journal #83, republicado em A máquina do Mundo. Textos de Apoio. org. Patrícia Mourão e Margaux Dauby (Doc’s Kingdom, 2018), 23 e Werner Herzog “Minnesota Declaration: truth and fact in documentary Cinema, 1999”. https://www.wernerherzog.com/complete-works-text.html#2.

17 Erika Balsom, “The reality-based community”, 25.
18 Erika Balsom, “The reality-based community”, 25.
19 Cf. Graeme Thomson, Silvia Maglioni, Olivier Marboeuf. “Entretien avec Silvia Maglioni & Graeme Thomson”. Propos recueillis à l’occasion du programme “Three lost films” au mk2 Beaubourg, septembre 2015; Cf. Silvia Maglioni, Graeme Thomson, Érik Bullot, “La Matière noire du cinéma. Entretien avec Silvia Maglioni & Graeme Thomson”, Les Laboratoires d’Aubervilliers. http://www.leslaboratoires.org/article/la- matiere-noire-du-cinema-entretien-avec-silvia-maglioni-graeme-thomson

Por sua vez, se hoje, como diz Erika Balssom, assistimos a “uma reabilitação da observação,” sintoma da era dos factos alternativos, e se ela responde ao lado inquietante que adquire a mistura entre realidade e ficção no espaço público mediático, esta parte do revivalismo dos elementos do modo observacional, “contesta os pressupostos epistemológicos que historicamente o acompanham, através de estratégias de opacidade, parcialidade, obstrução.” 17 A etnografia cinematográfica experimental de Lucien Castaing-Taylor, Véréna Paravel, J.P. Sniadecki, etc.; a etnoficção de realizadores como Adirley Queirós, Raúl Perrone, as novas possibilidades de observação de filmes de cineastas como Éric Baudelaire, Kevin Jerome Everson ou Harun Farocki denunciam a fidelidade ao mundo, que nos dão a experienciar em duração. Este retorno do real baseia-se, contudo, num “encontro com a alteridade e a contingência,” assente numa troca “indeterminada e sem significação garantida”18 entre o mundo, os que são filmados, os realizadores, o dispositivo e os espectadores, e que faz emergir uma nova definição de autenticidade, que não é a do cinema de observação tradicional, e dos seus pressupostos bazinianos de transparência da imagem cinematográfica.
O reverso disto são as contendas sobre o valor de verdade das imagens, associadas à sua manipulação para efeitos políticos ou de rejeição de verdades científicas e históricas, à disseminação de factos alternativos, fake news, deep fakes, etc., que caracteriza a nossa paisagem mediática, e que exige que articulemos a nossa crença (ou descrença) nas imagens ao desejo de saber mais sobre elas e com elas, e ao labor a isto associado.
Na nossa cultura audiovisual e digital, é cada vez mais importante interromper o fluxo de imagens e sons, repetir as imagens, deslocando-as de um contexto para outro, a fim de dar ao acontecimento e à realidade uma outra hipótese de serem vistos e pensados.
O trabalho de realizadores como Graeme Thomson e Silvia Maglioni vai neste sentido, quando numa série de curtas-metragens a que chamam de Tube-tracs, procuram, através do trabalho de montagem, reinscrever as imagens que são produzidas no YouTube e nos media virais, com o único objetivo de serem imediatamente transmitidas e consumidas, numa outra economia, que rompe com o circuito que legitimou a sua produção, inserindo-as numa outra lógica temporal, de desvio em relação ao potencial esquecimento a que estão destinadas. No outro extremo deste contributo para uma nova ecologia das imagens, temos a relação com o arquivo ausente, já não com o excesso, mas com a rarefacção das imagens, em que o infilmado, os filmes que não foram feitos, os espaços em branco da história do cinema, criticam os filmes e as imagens feitas.19 É assim que, a partir do interesse, por exemplo, pelo que não chegou a ganhar a estrutura de filme, pelas mãos do seu autor, o argumento não realizado do filósofo Félix Guattari, para um filme de ficção científica, chamado Un Amour d’UIQ, mais do que realizar finalmente esse filme, se tratou, em In search of UIQ (2017), de o actualizar através do cinema e possibilidades de montagem, mantendo nele em reserva a potência da obra não realizada, o que significa que o cinema serve de ferramenta arqueológica para auscultar a força e o impacto do que não aconteceu, mas podia ter acontecido.
Estas diferentes concepções e aproximações à prática do cinema e do documentário, reenviam para a impossibilidade de os dissociar da constante crítica do que é ou deve ser a relação ao real dos objectos fílmicos.

Crer na realidade do mundo a partir das suas imagens filmadas/em movimento, significa ao mesmo tempo poder duvidar delas ou pô-las em causa. Se a (re)produção cinematográfica do mundo e da realidade se mostra problemática, se nela o lado documental dificilmente se separa de questões de ficção, é na medida em que qualquer filme, enquanto tal, traduz automaticamente uma crítica do conceito de realismo e essa dimensão reflexiva é desde cedo absorvida pela própria prática dos realizadores, através da variabilidade de estilos, estratégias, dispositivos e modos de ver e ouvir implicados ou prescritos a cada variação da relação contínua e automática, mas ‘não isomórfica’ entre realidade e imagem.
 

De facto, a capacidade do cinema de apreender e capturar directamente o espectáculo da vida, é indissociável da sua própria problematização na relação com a realidade, o que é sinónimo de uma reflexão profunda sobre a tensão ou relação dialéctica entre o princípio ‘objectivo’ de descrição do mundo material pelo cinema e o processo ‘subjectivo’ da sua condensação ‘poética’, graças ao trabalho de intervenção e projecção sobre factos e realidades por parte de realizadores e espectadores.
Também para Gilles Deleuze – como fica patente nos argumentos que avança em relação a André Bazin, a propósito dos seus comentários ao neo-realismo e ao acrescento ou suplemento de realidade que aquele suporia, justamente em termos do critério da imagem não ser tanto o real como a relação que este mantém com o imaginário, o mental: “não é antes ao nível mental, em termos de pensamento que o problema deve ser colocado?,” pergunta Deleuze -, o movimento da imagem mais do que índice de realismo (o registo das relações espácio-temporais certas, de acordo com Bazin), é índice do processo pelo qual a imagem se faz realidade e os objectos, pelos quais o movimento se reparte, se fazem imagem, tal como o filósofo refere a propósito de Pier Paolo Pasolini. Com efeito, Pasolini considera que cinema e realidade estão unidos, não por um mecanismo de reflexo da mimésis, mas pela organicidade de um movimento de pensamento que envolve, simultaneamente, cinema e realidade, de modo a que um e outro só unidos adquirem sentido. Neste sentido, a leitura de Deleuze do “cinema como língua da realidade,” de Pasolini, permite-lhe uma primeira aproximação ao cinema como pressupondo a existência de uma matéria inteligível composta de signos pré-linguísticos, como condição de direito do cinema. A realidade reproduzida pelas imagens é, ao mesmo tempo, o que é exprimível pela matéria sinaléctica do cinema, enquanto liberta da contingência do aqui e agora, e atravessada por processos de pensamento, que são diferentes para a imagem-movimento e para a imagem-tempo.20

20 Gilles Deleuze, Cinéma 2. L’image-Temps, 7, 42-43, nota 8.

Dado que o movimento do cinema se constitui, então, na ultrapassagem do mero mecanismo de reprodução automática do movimento do mundo, inerente ao dispositivo, podemos ver nele o equivalente de um movimento psíquico e espiritual que faz advir o pensamento das imagens, anulando-as parcialmente enquanto fragmentos brutos retirados ao fluxo da vida, para lhes incutir novas dinâmicas criativas e inventivas. Nem uma técnica da mimésis indicial, nem uma arte da imagem fabricada, acrescentada e expressiva, mas, usando os termos de Jean-Luc Godard, “uma poética da citação.” Tal como o afirma Jacques Aumont, a citação vista como motor do cinema, desde os Lumière, da citação obrigada da realidade, do signo imediatamente citável produzido a custo, até à prática rodopiante, em carrossel, ad infinito da citação,21 quando já não se trata de citar o mundo directamente para lhe restituir o movimento, mas de citar as suas imagens, para refazer o movimento “a partir de retalhos já caídos do mundo filmado, a partir de imagens já registadas, saturadas de sentido e emoção.”22
Expor esta condição de ruína das imagens, no sentido da sua natureza fragmentária, esta simultaneidade do significante de cinema como uma citação do mundo e um fragmento memorial, desviado daquela relação imediata que alguma vez teve com a realidade, que pode ser posto a circular “como moeda de troca,” abstraído do seu contexto de partida ou significado, significa também tornar manifesta as condições da sua produção, i.e., de novo, a condição de ready made ou objet trouvé de qualquer imagem, inseparável de um processo de distanciação, de deslocação da imagem para além de uma suposta origem a que ela permitiria aceder.
De facto, a par da sua acepção dominante de representações ou índices de uma realidade fora delas ou exterior a elas, as imagens ganharam a partir do século XX uma vida própria; postas em circulação, graças à reproductibilidade técnica, adquiriram o carácter fétiche das mercadorias, incorporando num reverso de invisibilidade a retórica e a metalinguagem que nelas se cristalizou, e, por conseguinte, eclipsando as relações de poder e de forças que lhes deram origem, a inteligibilidade da realidade social e o trabalho humano que as produziram. Esta invisibilidade, não no sentido de uma ausência ou falta, acentuada hoje por novas invisibilidades produzidas pelo digital, é um desafio para o cinema. Daqui decorre a necessidade de um cinema de crítica da representação, para lá da diferença entre documentário e ficção, que ponha a tónica na fabricação das imagens, não como quem vai à sua fonte, no sentido, de procurar através delas os traços e a origem ou verdade dos factos, mas como quem se entrega com elas e através delas a construções que permitem a extracção de relações essenciais não imediatamente visíveis. Isto graças ao trabalho de montagem (e de todos os procedimentos de mistura que lhe estão associados, reenquadramentos, manipulações fotográficas, ralentis, etc.)
Trata-se de propor um outro ponto de vista sobre as imagens do cinema: mais do que formas de aceder à realidade de um dado momento, é a realidade que é uma elaboração a partir delas, o que implica concebê-las e praticá-las como documentos, à maneira da arqueologia de Foucault. Ou seja, simultaneamente abordá-las e criticá-las como efeitos de construções, de convenções e retóricas cinematográficas e dos media, e da consequente naturalização de modalidades estagnadas de representação do mundo, mantidas inquestionadas; de ir da imagem à sua representação, ao seu modo de produção – no fundo, entendê-las como parte da massa de documentos que integra o que Foucault chama de arquivo, i.e., o que é possível de ver e dizer num dado momento – , e também, em sentido inverso, como material sobre o qual se trata de exercer um novo corte, um novo olhar, de as abrir a todas conexões, permitindo a libertação de virtualidades insuspeitas.
Para Michel Foucault a arqueologia é uma nova forma de aceder à configuração de enunciados e visibilidades que correspondem ao saber ou ao pensamento dominante de uma dada época, ou seja, ao seu arquivo. O filósofo propõe uma nova perspectiva sobre a história e o papel do documento na sua leitura.23
 
 
 
 

21 Jacques Aumont, Amnésies. Fictions du cinéma d’après Jean-Luc Godard (Paris: P.O.L., 1999), 61.
22 Serge Daney, “Do desfilar ao desfile”, in O cinema que faz escrever, Ed. Clara Rowland, Francisco Frazão, Susana Nascimento Duarte, Trad. Ana Eliseu e Joana Frazão (Coimbra: Angelus Novus, 2016), 227.
23 Supõe uma concepção de documento entendido não como uma matéria inerte ou ferramenta de reconstituição do passado, mas como materialidade documental que devemos pôr em obra, desenvolver a partir de dentro – ficção do arquivista.

24 Michel Foucault, “Sur l’archéologie des sciences. Réponse au Cercle d’épistémologie”, Cahiers pour l’analyse, no. 9 (été 1968), 9-40, in Dits et écrits I, 1954-1975, Ed. D. Defert et F. Ewald, 724-759 (Paris: Gallimard, 2001), 736.

J’appellerai archive, non pas la totalité des textes qui ont été conservés par une civilisation, ni l’ensemble des traces qu’on a pu sauver de son désastre, mais le jeu des règles qui déterminent dans une culture l’apparition et la disparition des énoncés, leur rémanence et leur effacement, leur existence paradoxale d’événements et de choses. Analyser les faits de discours dans l’élément général de l’archive, c’est les considérer non point comme documents (d’une signification cachée, ou d’une règle de construction), mais comme monuments; c’est – en dehors de toute métaphore géologique, sans aucune assignation d’origine, sans le moindre geste vers le commencement d’une arché – faire ce qu’on pourrait appeler, selon les droits ludiques de l’étymologie, quelque chose comme une archéologie.24
 

O arquivo confunde-se com as condições de possibilidade do saber, com o pode ser dito e visto, percepcionado e agido, num dado momento e, portanto, num certo sentido não há exterior do Arquivo. O trabalho da arqueologia é, colocando-se ao nível dos enunciados, conseguir dar visibilidade, trazer à luz essas condições de enunciação num dado momento e os jogos de verdade que possibilitam. Mostrar esse grande dispositivo de produção de verdade, como não natural, não universal, como contigente e histórico, significa também pôr-nos face à dimensão de intolerável, de bêtise dos nossos modos de pensar, agir, etc.. À semelhança da arqueologia, a arte em geral, e o cinema em particular, são outros tantos pontos de vista sobre o arquivo ou arquivos dominantes de uma época, permitindo uma descolagem crítica em relação a eles ou ao modo de ligação a esses arquivos – ponto de vista do autor, do sujeito de conhecimento, da ideologia.

25 André Bazin, “L’Évolution du langage cinématographique”, in Qu’est-ce que le cinéma? (Paris: les Éditions du Cerf, 1958), 132.
26 Cf. Thomas Elssaesser, “Simulation and the Labour of Invisibility: Harun Farocki’s Life Manuals”.
27 “In an interview with me many years ago, Farocki conceded that he was, as a filmmaker and image producer, part of those whose task it was to ‘make the world superfluous’, meaning that a world that puts its faith in the image, can become careless about the fate of that world ‘in reality’.” Thomas Elsaesser, “Simulation and the Labour of Invisibility: Harun Farocki’s Life Manuals”.
28 Thomas Elssaesser, “Making the world superfluous: an interview with Harun Farocki”, in Harun Farocki. Working on the Sight-lines, Ed. Thomas Elssaesser (Amsterdam: Amsterdam University Press, 2004), 184.
29 Como refere Thomas Elssaesser, estas imagens digitais produzem invisibilidade em relação ao mundo e à realidade, que são o seu fora de campo, o limite do visível que elas produzem, mas de duas formas: no sentido do que “vemos e experienciamos todos os dias e que pode não ter nada a ver com a realidade que de facto afecta as nossas vidas e determina a nossa sorte;” e no sentido “da materialidade dura e nefasta,” experienciada por muitos, “dos efeitos de um mundo que passou a viver em função da sua imagem (simulada);” esta presença bruta e directa do mundo é também o que foi votado à invisibilidade e que emerge como contra- campo ausente para onde reenviam muitos dos filmes de Harun Farocki. Cf. Thomas Elssaesser, “Simulation and the Labour of Invisibility: Harun Farocki’s Life Manuals”.
30 Cf. Wolfgang Ernst and Harun Farocki, “Towards an archive for visual concepts”, in Harun Farocki.
Working on the Sight-lines, Ed. Thomas Elssaesser (Amsterdam: Amsterdam University Press, 2004).
31 Cf. Carles Guerra, “Expanded Soft Montage”, in Harun Farocki. Another Kind of Empathy, Ed. A. Ehmann & C. Guerra (Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 2016), 50-51.

A prática cinematográfica de Harun Farocki permitir-nos-á elucidar, em jeito de conclusão, este funcionamento do cinema como arqueologia das imagens nesta acepção, pois mostra-nos, à semelhança do que faz Foucault, que o que torna a visualidade e a discursividade inteligíveis, é ele mesmo não dito e não visto. É um corpo de dispositivos e práticas anónimas dispersas por vários lugares. As visibilidades não são nem actos de um sujeito, nem dados de um sentido visual, tal como os enunciados não são privilégio de um autor ou de uma obra. Farocki retraça a formação do que se passa por detrás das evidências do que vemos, dizemos, fazemos, devolvendo-nos a visibilidade imperceptível da nossa época e de nós próprios.
É por isto que Harun Farocki é um autor que não cessa de nos permitir interrogar o estatuto ontológico de realismo fotográfico e cinematográfico na era do arquivo digital, ao mesmo tempo que se coloca para lá da distinção proposta por Bazin no texto “A evolução da linguagem cinematográfica,” entre cineastas da crença na realidade ou pelo menos no que se pode designar de realidade pró-fílmica, e cineastas da crença na imagem.25 De facto, na verdade, em Farocki, os dois pólos da distinção aproximam-se, e a sua separação tende para a erosão, na medida em que a fé na imagem pode suceder, mais do que anteceder a uma desconfiança e crítica em relação à imagem, e a fé na realidade pode estar ancorada numa profunda constatação de que “o que vemos não é o que lá está.”26 É assim que uma sequência como a das fotografias aéreas de Auschwitz no filme Bilder der Welt und Inschrift des Krieges (Imagens do mundo e inscrição da guerra, 1988), serve de metáfora para o que está em causa na obra de Farocki, um cineasta, como diz Thomas Elssaesser, que investiga a relação entre a imagem e o devir progressivamente supérfluo do mundo e da realidade.27
O pressuposto do olho esclarecido herdado do Iluminismo, responsável por uma concepção ilusória de que as imagens dos media visariam ainda a representação de uma realidade pré-filmica, no que seria um contributo para o conhecimento aprofundado e informado da mesma, não é mais possível e tem de ser contrariado criticamente. Por outro lado, o que era ainda um trabalho humano, um trabalho de produção e recepção de imagens do e sobre o mundo, através da visão tecnicamente assistida por aparelhos ópticos de registo e reprodução, passou completamente para o lado das máquinas, que produzem um visual que releva totalmente do cálculo, e que se emancipa da realidade, ou seja, imagens que são cegas, são repérages destinadas a ver e vigiar ou controlar um processo, e em geral não são para ver e não são vistas. São imagens tomadas de uma posição que não pode ser ocupada por uma pessoa real – as imagens operacionais. Estamos perante uma outra filiação para o cinema, não como fazendo parte da história da narração, mas da história de outras técnicas e tecnologias de vigilância, medição, cálculo e automação. Segundo Farocki, as imagens aparecem aqui como uma subcategoria de um certo tipo de medições e de cálculos. Os números, os bits são o material primeiro. São calculados as estatísticas e os números e, às vezes, um botão é pressionado e há uma imagem que podemos ver, mas que é supérflua. O olho humano, tal como o trabalho físico, já não é essencial para o processo de produção de imagens. O campo da visão é cada vez mais automatizado. Nesta perspectiva, a função das imagens do cinema e da televisão é a de manter os nossos olhos alerta e em movimento, tal como se exercitam cavalos quando não estão no exterior a ‘trabalhar’.28
Os filmes de Farocki mostram essa transformação do mundo em imagem e literalmente pela imagem: é sobre a imagem e em função dela que se age. Daí a necessidade de construção de “laboratórios de imagem,” de simulações como as que se mostram no filme Die Schöpfer der Einkaufswelten (The Creators of the Shopping Worlds, 2001) e que tentam esgotar, no sentido de os prever, todos os gestos possíveis do futuro consumidor dos espaços comerciais em projeção, num esforço para condicionar cada gesto actual, esboçado na realidade, a encaixar, a ir ao encontro dos quadros previstos pela simulação do real; a realidade acolherá, assim, um gesto desde logo constrangido na sua aparente liberdade. É no território da imagem digital, virtual, simulada, que a realidade se enforma, que se determina a arquitectura do real. Esta desenha-se na expectativa de responder e coincidir o mais possível com a sua simulação. É a sua simulação que a determina e não o contrário. Age-se sobre a imagem e não mais directamente sobre o real, à distância, evitando o contacto e a proximidade. As imagens não são mais representações de um real que lhes pré-existe, elas são simulações de um real que as irá decalcar.29
Farocki vai trabalhar sobre a história das imagens-técnicas, na relação com o Ocidente, com a história da civilização moderna, no modo como aquelas cruzam, tornando-as produtivas em termos epistemológicos para finalidades biopolíticas e de controlo, diversas esferas da vida (e da morte), guerra, trabalho, consumo. À semelhança de Foucault, trata-se de pôr em prática a capacidade descritiva do digital e do cinema, para através dos próprios meios da imagem servir para perscrutar no arquivo audiovisual e digital, no sentido literal, material e no de Foucault, em função de critérios formais, e não de significação das imagens, ou seja, sem recorrer a uma dimensão meta-discursiva. Isto significa usar o cinema (e a montagem) para se colocar ao nível das imagens, numa crítica imanente das mesmas. O que lhe interessa não é o seu ponto de vista sobre as imagens, mesmo se os seus filmes implicam um ponto de vista preciso, e decorrem da interpelação que se estabelece entre as imagens e o processo do seu visionamento por parte do realizador. Também não lhe interessa tratar o seu tema ou o comportamento dos personagens, quando as há, nas imagens que estuda, i.e., permanecer ao nível do conteúdo das imagens – mesmo se isto nem sempre é possível -, mas, sim, tentar evitar as interpretações que fazem o filme desaparecer na exegese, para procurar salvar alguma coisa através de estratégias de sobreinterpretação e de subinterpretação. No texto Towards an archive for visual concepts,30 por exemplo, refere a este respeito que nos seus filmes sobre alguns motivos cinematográficos recorrentes, Arbeiter verlassen die Fabrik, (Workers leaving the factory, 1995), Der ausdruck der Hande, (The expression of Hands, 1997), quando procurava uma ordem para o material, foi guiado pela ideia de constituição de um arquivo das expressões fílmicas, que pudesse ajudar a inculcar uma consciência da linguagem cinematográfica.
Num primeiro momento, nos primeiros filmes desta série, precisamente os que acabamos de referir, trata-se de ir da imagem a uma interrogação sobre a linguagem, sobre o léxico e sintaxe cinematográficas para documentar o uso e a recorrência de certos motivos e expressões (Feasting or flying, 2008, e War Tropes, 2011, realizados com Antje Ehmann, seriam as ocorrências mais recentes deste arquivo imaginário); num segundo momento, nos seus trabalhos sobre controlo e vigilância, como Auge/Maschine I-III (Eye/Machine I-III, 2001), Gefängnisbilder (Prison Images, 2000), I thought I was seeing convicts, 2000, trata-se de ir das imagens aos dispositivos da sua produção. O que lhe interessa é de certo modo, a neutralidade do ponto de vista do arquivo, o ponto e vista da articulação saber-poder, ou seja, a explicitação das condições de produção e existência das próprias imagens e das redes de discurso e significação que as determinam. Para isso é necessário operar uma distanciação, uma deslocação da imagem, das imagens, para além de uma suposta origem – suposta significação, referente ou factualidade, a que ela(s) permitiria(m) aceder e nas quais o seu sentido se esgotaria.
Esta distanciação e deslocação são indissociáveis da sua reflexão sobre a própria montagem e de uma vontade ou preocupação em definir o seu alcance precisamente enquanto ferramenta com propriedades arqueológicas.
A soft montage, como a apelidou, ferramenta analítica e discursiva, é a forma de criar ligações entre os planos e as imagens, por um lado desmantelando outros textos fílmicos, por outro reinscrevendo-os e unindo estas componentes e criando ligações que de outro modo permaneceriam invisíveis. A montagem entendida nestes termos é um exercício teórico, de compilação, em que a descrição e a repetição visam produzir novos significados, fazê-los explodir num processo interminável (de produção), que envolve o espectador, para lá do controlo do autor,31 fazendo precisamente jus à necessidade de uma nova crítica das imagens, uma crítica não textual ou semiológica, como a em voga nos anos sessenta e setenta, para lá da predominância do discurso sobre as visibilidades, e que se realiza através de uma renovação da concepção de ensaio em contraposição à subjectividade produzida e homogeneizada pelos media e hoje pelas tecnologias digitais e redes sociais.
Ao mesmo tempo, a prática arqueológica do cinema de Farocki elucida-nos também, e por extensão, sobre a condição de ready made ou object trouvé de qualquer imagem, e permite descrever criticamente não só o material de arquivo que usa nos seus filmes ‘found-footage’, como o seu próprio material original, entendido como uma citação da realidade, na medida em que se trata de ocupar precisamente o lugar que denuncia nos outros filmes de found-footage. De facto, também nos seus filmes de ‘cinema directo’ se trata de trabalhar através de “guiões” pré-existentes. Farocki não constrói a história, encontra-a já dada.

Images and sounds that we find without already having been aware that they exist are like an objet trouvé. Imagine a child who is walking on the beach and suddenly reaches for a pebble that evokes the lines of a human face. The objet-trouvé artist tries to preserve this notion of amazement. This also expresses that you cannot create meaning systematically, as the big production companies, cinema, and TV stations try to do. One needs chances and the luck of a finder. Documentary films often refuse to take the ideal and allocated point of view in order to seek out their own—which could be the back of the building. I like looking at something as it is being presented to me. And then I make the picture appear a little bit different from how it wants to be seen, to perform a small alteration as we know it from pop art.32
 

32 Harun Farocki and Randall Hale, “History Is Not a Matter of Generations: Interview with Harun Farocki”, Camera Obscura 46, Vol. 16, no. 1 (2001), 56.

33 Antje Ehmann, “Working with Harun Farocki’s Work”, in Harun Farocki. Another Kind of Empathy, Ed. A. Ehmann & C. Guerra (Barcelona: Fundació Antoni Tàpies, 2016), 30.
34 Antje Ehmann, “Working with Harun Farocki’s Work”, 33.
35 Antje Ehmann, “Working with Harun Farocki’s Work”, 34.

Ein neues Produkt (The New Product, 2012), mas também os anteriores Die Umschulung (Retraining in Another Profession, 1994), or Die Bewerbung (The Interview, 1997), entre outros, pertencem a este segundo grupo de filmes, em que se trata para Farocki não tanto de uma política das imagens, como de um trabalho com as palavras, no sentido em que as pessoas realizam o seu trabalho através das palavras, como refere Antje Ehmann.33 A linguagem em causa nestes filmes é a dos role-playing games, e estende-se ao corpo, gestos e expressões faciais, sendo a outra faceta da criação já referida de simulacros da experiência e da realidade. É também a linguagem associada à construção de novos modelos de vida e de trabalho pelas empresas de marketing e consultoria. Estes filmes abstêm-se de explicar e enquadrar sociológica e biograficamente as pessoas que retratam. Instalam-se nos meios laborais associados às acções de formação contínua, aos treinos consecutivos de adaptação às exigências das nossas sociedades de hoje, à incorporação e aplicação da cultura corporativa e da ideologia neo-liberal do mercado, sem a preocupação de nos forneceram qualquer tipo de background, como acontece no cinema convencional. Isto permite-lhes colocarem- se ao nível da própria transitividade da linguagem, e dos actos de fala, que mais do que pertencer a alguém em particular, se fala a si própria.34 “O sonho de Farocki era documentar processos na realidade que dão a impressão, quando em filme, de que não podem ser verdade – de que estamos a assistir a um filme de ficção. O seu objectivo era um nível de hiperrealismo que pode ser lido como um salto no futuro,”35 mas que na verdade remete para o imperceptível do nosso mundo, no que tem de absurdo, aberrante, etc..

Mesmo as imagens directamente filmadas por Farocki enquadram-se num espírito de forte consciência da natureza em segundo grau das imagens, de análise da ideia de reproductibilidade contida nas constelações de imagens que medeiam o espaço público, entendidas como a própria matéria de que é feito o mundo.
Mostra-nos, assim, que as passagens entre documentário e ficção, mais do que a sua distinção, são a condição do cinema, no sentido em que aceder à realidade devém inseparável da ideia de fingere, modelar, moldar, procurar a figura, cara ao ensaio, mas o ensaio entendido menos como um género e mais como uma polaridade do cinema, tal como o concebe Jean-Pierre Gorin: via a potência da montagem, uma forma de pensamento subjectiva que atravessa modos do documentário e modos da ficção e tende a ultrapassá-los, a apagar a sua diferença. As imagens são consideradas não como simples traços da realidade, com pretensão à evidência, à prova, mas como ‘documentos’ imbuídos de uma retórica ou como monumentos, em que não se trata de operar a restituição de uma origem para a qual reenviam as imagens na sua relação com o mundo – uma arché, mas de as deixar insinuar-se a partir da manifestação de uma vida e realidade próprias.

 
 
 
 
first published in
Cinema-Journal of Philosophy and the Moving Image 12, “Images of the Real”