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A Busca Totalizante De Sentido

29 Aug, 22

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O documentário não existe — quer o termo designe uma categoria de material, um género, uma abordagem, ou um conjunto de técnicas. Esta afirmação — tão antiga e fundamental quanto o antagonismo entre nomes e realidade — precisa de ser incessantemente reafirmada, apesar da muito visível existência de uma tradição documental. No cinema, longe de atravessar actualmente uma crise, tal tradição tende a fortalecer-se através de uma recorrência de declínios e renascimentos. De facto, são inúmeras as narrativas que tentam unificar/purificar as suas práticas ao postularem uma evolução e continuidade de um período para o outro, apoiando-se profundamente em conceitos de periodização tradicionais e historicistas.

Não há nada de mais pobre que uma verdade expressa tal como foi pensada.
Walter Benjamin1

1 Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por volta de 1900, trad. Isabel de Almeida e Sousa, e Cláudia de Miranda Rodrigues (Lisboa: Relógio d’Água, 1992), 97.

Num mundo completamente catalogado, o cinema é muitas vezes reificado como um corpo de tradições. O seu conhecimento pode constituir a sua própria destruição, a não ser que o jogo mude constantemente as suas regras, jamais convencido do seu desfecho e sempre disposto a ir além dos seus próprios princípios. Por um lado, a verdade é produzida, induzida e alargada de acordo com o regime que detém o poder. Por outro, ela encontra-se entre os vários regimes de verdade. Como diz a fábula, “o que te contar três vezes é verdade”. Questionar o relato historicista do documentário como um desenrolar contínuo não significa necessariamente defender a descontinuidade, assim como resistir ao sentido não conduz necessariamente à sua simples negação. A verdade, “mesmo quando apanhada em fuga”, não se entrega em nomes, enquadramentos ou fotogramas; o sentido deve ser impedido de se fechar no que é dito ou mostrado. Verdade e sentido: os dois tendem a ser equiparados. No entanto, muitas vezes o que é proposto como verdade não é nada mais do que um sentido. E o que perdura entre o sentido de algo e a sua verdade é o intervalo, uma interrupção sem a qual o sentido estaria fixado e a verdade solidificada. Talvez por isso seja tão difícil falar sobre o intervalo. Sobre o cinema. Sobre. As palavras soam a falsas. O que fazer com filmes que se propõem destrinçar a verdade da mentira quando a visibilidade dessa verdade assenta precisamente no facto de ser falsa? Como lidar com uma “teoria do cinema” que nunca pode teorizar “sobre” o cinema, mas apenas com os conceitos que o cinema convoca, relacionando-os com os conceitos de outras práticas?

Um homem dirigiu-se a um templo taoista e pediu que lhe lessem a sina. “Primeiro deve doar dinheiro para incenso, ou a adivinhação não será o mais exacta possível,” disse-lhe o sacerdote. “De facto, sem a doação nada se tornará realidade!” “The Words Will Not Ring True”, Wit and Humor from Old Cathay2

 
 
2 “The Words Will Not Ring True”, Wit and Humor from Old Cathay, trad. J. Kowallis (Beijing: Panda Books, 1986), 164.

Os conceitos não são menos práticos do que a imagem ou o som. Mas a ligação entre o nome e o que é nomeado é convencional, não fenomenal. Produzir teoria do cinema (ou melhor, filosofar com o cinema), o que não é o mesmo que fazer filmes, é também uma prática — relacionada com aquela mas diferente —, pois a teoria deve ser (des)construída assim como ela (des)constrói o seu objeto de estudo. Se os conceitos cinematográficos não são ready-mades nem preexistem no cinema, também não são teoria sobre o cinema. Na melhor das hipóteses, opor a prática à teoria (e vice-versa) pode ser um instrumento de desafio recíproco. No entanto, como todas as oposições binárias, também esta acaba enredada no pensamento positivista, cujo ímpeto é fornecer respostas a todo o custo, assim reduzindo tanto a teoria como a prática a um processo de totalização. Desculpem, mas se vamos usar palavras temos de ser precisos na forma como as usamos. Não é uma questão de técnica, é uma questão de material. Se o material é real, então é um documentário. Se o material é inventado, então não é um documentário… Se ficam assim tão baralhados com o termo, por favor deixem de o usar. Falem só de filmes. De qualquer modo, muitas vezes usamos estes termos para evitar discutir verdadeiramente o filme (Lindsay Anderson)3

 
 
 
 
 
3 Lindsay Anderson, citada por G. Roy Levin, Documentary Explorations: Fifteen Interviews with Filmmakers, (Garden City, NY: Doubleday & Company, 1971), 66.

 

No esforço geral de analisar o cinema e produzir “teoria sobre cinema” há uma tendência inevitável para reduzir a teoria do cinema a uma área de especialização e conhecimento, a qual permite a constituição de uma disciplina. Para além disso, encontramos a defesa de uma concepção iluminista e “burguesa” da linguagem, segundo a qual o meio de comunicação é a palavra, o seu objeto é factual, e o seu destinatário é o sujeito humano (a ordem linear e hierárquica das coisas no mundo da reificação). Ora, toda a linguagem, como meio de comunicação no seu sentido mais radical, “se comunica a si mesma”4. Deste modo, a função referencial da linguagem não é negada, mas liberta da sua falsa identificação com o mundo fenomenal e da sua suposta autoridade como meio de cognição sobre esse mundo. A teoria pode surgir precisamente como o local onde temos acesso a este conhecimento negativo sobre a fiabilidade dos próprios princípios operativos da teoria, e onde as categorias teóricas, à semelhança de outros esquemas de classificação, continuam a ser invalidadas, em vez de apropriadas, reiteradas e preservadas.

 
 
 
 
4 Walter Benjamin, “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”, in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política, trad. Manuel Alberto, Maria Amélia Cruz, Maria Luz Moita (Lisboa: Relógio d’Água, 1992), 179.

Quão verdadeira é a adivinhação do teórico do cinema? Enquanto mulher desvalorizada no contexto da Igreja, Sor Juana Inés de la Cruz (um nome entre muitos outros) diria provavelmente que o conhecimento “verdadeiro” deve ser separado do seu uso instrumental5. A ligação entre dinheiro e factos emerge precisamente nas situações em que passa despercebida ou é veemente negada. No que toca à exactidão ou verdade, a questão da qualidade parece depender em grande medida do peso ou quantidade da doação — dinheiro para incenso, como especifica o sacerdote referido acima. De facto, algumas das questões invariavelmente colocadas aos realizadores em debates públicos são: “Qual a shooting ratio? O orçamento? Quanto tempo levou a terminar o filme?” Quando mais alta a aposta, melhor o produto; quanto mais dinheiro envolvido, mais valioso o filme e mais credível a verdade que encerra. Quanto mais tempo tiver levado a rodagem, mais valorizada é a experiência e mais fiável a informação. Os filmes são transformados em verdadeiros produtos de “baixo orçamento” ou de “grande orçamento”. É isto que se ouve constantemente e que acabamos também nós por dizer. “Baixa tecnologia”, “alta tecnologia”, “lixo de alta qualidade”, “imagens de qualidade inferior”. Pressão, dinheiro, ambição são as palavras de ordem… O slogan generalizado nos meios factuais e “alternativos” bem pode afirmar que “quanto maior o grão, melhor a política”, mas o que circula exclusivamente na cultura dos meios de comunicação de massa é sem dúvida a imagem do dinheiro. O dinheiro enquanto dinheiro e o dinheiro enquanto capital são muitas vezes vistos como um só. No entanto, as limitações financeiras são não só um problema de dinheiro, mas também de controlo e estandardização de imagens e sons. Que verdade? Verdade de quem? Quão verdade? (A famosa afirmação de Andy Warhol soa a verdadeira: “Comprar é muito mais americano do que pensar.”) Em nome do serviço público e da comunicação de massas, o olho obcecado com fazer dinheiro (ou melhor, o olho escravo do dinheiro) permanece colado ao cenário permanente da imagem valorizada em função do efeito e/ou da produção.

 
 
 
 
5 Veja-se a releitura que Jean Franco fez do seu trabalho em Plotting Women: Gender and Representation in Mexico (Nova Iorque: Columbia University Press, 1989), 23-54.

Diz-se que o documentário surgiu da necessidade de informar o povo (a Kino-Pravda ou “Câmara-Verdade” de Dziga Vertov) e mais tarde se afirmou como uma reacção contra o cinema de entretenimento, o qual monopolizou os vários usos do cinema. O cinema foi redefinido como um meio ideal de doutrinação e comentário social, cujas virtudes residiam na sua capacidade para “observar e seleccionar a partir da própria vida”, “abrir a cortina para o mundo real”, fotografar “a cena e história vivas”, dar ao cinema “poder sobre um milhão de imagens”, assim como alcançar “uma intimidade de conhecimento e efeito impossível às piruetas mecânicas do estúdio e à interpretação copinho-de-leite do actor metropolitano” (John Grierson) 6 . Afirmando a sua independência em relação ao estúdio e às grandes estrelas, o documentário encontra a sua raison d ́être numa distinção estratégica. Ele coloca a função social do cinema no mercado. Pega em pessoas e problemas do mundo real e lida com elas. Dá valor à observação íntima e avalia o seu mérito em função da sua capacidade para capturar a realidade em fuga, “sem interferência material, ou intermediário”. Histórias vivas e marcantes, numa infinidade de situações autênticas. Tudo gravado num só take. O palco é nada mais nada menos do que a própria vida. Com a abordagem documental o cinema regressa aos seus fundamentos… Através da selecção, eliminação e coordenação de elementos naturais, desenvolveu-se uma forma fílmica original e não condicionada pela tradição teatral ou literária… O documentário é uma forma artística original. Enfrenta os factos de maneira única e original. Abrange a parte racional das nossas vidas, desde a experiência científica ao estudo poético da paisagem, mas sem nunca se afastar do factual (Hans Richter)7.

 
 
 
 
 
6 John Grierson, Grierson on Documentary, ed. Forsyth Hardy (Nova Iorque: Praeger, 1966, reeditado em 1971), 146-47.
 
 
 
 
 
 
7 Hans Richter McCann, “Film as an Original Art Form”, in Film: A Montage of Theories, ed. R. Dyer MacCann (Nova Iorque: E. P. Dutton, 1966), 183.

O mundo real: tão real que o Real se torna o único referente básico — puro, concreto, fixo, visível, demasiado visível. O resultado é a elaboração de toda uma estética de objectividade e o desenvolvimento de amplas tecnologias de verdade, capazes de promover o que está certo ou errado no mundo e, por extensão, o que é “honesto” ou “manipulador” no documentário. Isto implica uma procura alargada e incansável de naturalismo em todos os elementos da tecnologia cinematográfica. Indispensáveis a este cinema da imagem autêntica e da palavra falada são, por exemplo, o microfone direccional (que localiza e restringe no seu processo de seleccionar o som para o tornar decifrável) e o gravador portátil Nagra (inigualável na sua capacidade de documentar de forma fidedigna). O som sincronizado com os movimentos labiais é validado como a norma. É uma exigência, não tanto para reproduzir a realidade (isto concedem os fazedores de factos), mas para “mostrar pessoas reais em lugares reais entregues a tarefas reais.” (Mesmo sons assíncronos gravados no contexto são considerados “menos autênticos”, uma vez que a técnica de sincronização sonora e o seu uso institucionalizado se tornaram “naturais” na cultura cinematográfica). Considera-se que o tempo real é mais “verdadeiro” do que o tempo cinematográfico, por isso o take longo (ou seja, um take que dure os 120 metros de comprimento do rolo de película disponível comercialmente) e a montagem minimal ou inexistente (mudanças na fase do corte final são vistas como “engodo”, como se a montagem não estivesse já presente nas fases de concepção e rodagem) são vistos como mais apropriados para evitar distorções na estruturação do material. A câmara é o interruptor para a vida. Assim, o grande plano é condenado pela sua parcialidade, enquanto o plano geral é visto como mais objectivo, porque inclui mais no enquadramento, retratando mais fielmente o acontecimento dentro do seu contexto. (Quanto maior e mais amplo, mais verdadeiro — como se o plano geral não fosse também ele uma forma de enquadramento, à semelhança dos planos mais fechados.) A câmara leve, portátil, independente de tripé — o ponto fixo de observação — é louvada pela sua capacidade de “passar despercebida”, já que esta deve ser simultaneamente móvel e invisível, integrada no meio de forma a mudá-lo o menos possível, mas também capaz de ser intrusiva e provocar as pessoas a dizerem a “verdade” que não revelariam em situações normais.

Milhares de ineptos levaram a que a palavra [documentário] signifique hoje uma forma enfadonha e rotineira de fazer cinema, o género de cinema que uma sociedade de consumo alienada pode parecer merecer — a arte de falar continuamente durante um filme, com um comentário imposto de fora, de forma a não se dizer nada e a não se mostrar nada (Louis Marcorelles)8. O acontecimento puro. Só o acontecimento: inalterado, não regulado pelo olho que o regista ou o olho que o vê. Se o observador social perfeitamente objectivo já não surge como o modelo almejado pelos documentaristas contemporâneos, ainda assim o Homem Comum continua a ser ensinado, a cada emissão, de que Ele é antes de mais um Espectador. Ou não é responsável pelo que vê (porque só o acontecimento que lhe é apresentado conta), ou a única forma de ter alguma influência sobre as coisas é enviando uma doação monetária. Assim, embora a perceção do realizador possa ser facilmente aceite como irremediavelmente pessoal, a objectividade da realidade do que é visto e representado permanece incontestável. [Cinéma-vérité]: seria mais correto chamar-lhe cinema-sinceridade… Ou seja, pede-se ao público que confie na evidência. Diz-se ao público, foi isto que eu vi, não falsifiquei nada, foi mesmo isto que aconteceu… Olho para o que aconteceu com o meu olho subjectivo e é isto que acho que ocorreu… É uma questão de honestidade (Jean Rouch)9.

8 Louis Marcorelles, Living Cinema: New Directions in Contemporary Film-making, trad. L Quigly (Nova Iorque: Praeger, 1973), 37.
 
 
 
 
 
 
9 Jean Rouch, in G. Roy Levin, Documentary Explorations, 135.

O que é apresentado como evidência mantém-se uma evidência, quer o olho observador se defina como subjectivo ou objectivo. No centro desta lógica, encontra-se intacta a divisão cartesiana entre sujeito e objecto, que perpetua uma visão do mundo dualista e opõe dentro/fora, mente/matéria. Aqui, a ênfase é novamente colocada no poder que o cinema tem de capturar a realidade “lá fora” para nós “aqui dentro”. O momento de apropriação e consumo ou é simplesmente ignorado, ou é cuidadosamente invisibilizado de acordo com as regras do bom ou mau documentário. A arte de falar e não dizer nada vai de mão dada com a vontade de dizer, e nesse dizer confinar algo a um sentido. A verdade tem que ser apresentada de forma vívida e interessante, ou seja, tem de ser “dramatizada” se se quer convencer o público da evidência. É essa sua “confiança” na evidência que permite que a verdade ganhe forma. Documentário — a apresentação de factos reais de modo a que as pessoas os vejam como credíveis e reveladores num determinado momento (William Stott)10.

 
 
 
 
 
10 William Stott, Documentary Expression and Thirties America (Nova Iorque: Oxford University Press, 1973, reeditado em 1976), 73.

O real? Ou a repetida e artificial ressurreição do real? Uma operação cujo sucesso esmagador na substituição do real pelos signos visuais e verbais do real acaba por permitir o próprio questionamento do real, assim intensificando as incertezas geradas por uma divisão clara entre os dois. Na escala do que é mais ou menos real, o tema assume uma importância fundamental (“É muito difícil, senão mesmo impossível,” diz o coordenador de um festival de cinema, “pedir ao júri da secção de documentário que não confunda a qualidade do filme com o tema de que este trata.”) O foco recai inegavelmente sobre a experiência comum, a partir da qual o “social” é definido — uma experiência cujo protagonista é “o homem simples que nunca se exprimiu”, na formulação paternalista de um famoso realizador de documentários (Pierre Perrault)11.

 
 
 
 
 
 
 
11 Citado em Louis Marcorelles, Living Cinema, 26.

Deste modo, o cineasta de orientação social é uma figura todo-poderosa que dá voz (aqui num contexto vocalizador exclusivamente masculino) e a sua posição de autoridade na produção de sentido permanece inquestionada, habilmente mascarada de missão justa. A relação entre mediador e meio (ou actividade mediadora) ou é ignorada — ou seja, presume-se transparente, livre de julgamentos e inconsciente como qualquer instrumento de reprodução deve ser — ou então é tratada de forma conveniente: ao humanizar a recolha de evidência com o fim de manter o status quo. (Sou subjectivo como qualquer ser humano, claro, mas ainda assim você deve confiar na evidência!) Os bons documentários são aqueles cujo tema está “correcto” e que apresentam um ponto de vista com que o espectador concorda. O que está em causa pode ser uma questão de honestidade (em relação ao material), mas é também muitas vezes uma questão de adesão (ideológica), ou seja, de legitimação.

Para além disso, os filmes feitos sobre pessoas comuns são naturalmente promovidos como feitos para essas mesmas pessoas, e só para elas. Na ânsia de servir as necessidades dos que não têm voz há frequentemente a vontade de os definir, bem como às suas necessidades. Por exemplo, quando os realizadores participam em debates em que um filme é criticado pelo seu tratamento simplista e redutor de um tema, resultando na manutenção do próprio status quo que se propõe contestar, a sua tendência é a de rejeitar a crítica, alegando que o filme não se destina a “espectadores sofisticados como nós, mas ao grande público”, assim se colocando acima e à margem do público real, aqueles “lá fora”, os pobres de espírito que precisam que lhes expliquem tudo o que vêem. Apesar da mudança de foco — do mundo da mobilidade ascendente e da grande opulência que domina os meios de comunicação para o dos “seus pobres” —, o que perdura é a velha oposição entre o fornecedor criativo e inteligente e o consumidor medíocre e ignorante. O pretexto para perpetuar esta divisão é a crença de que as relações sociais são determinadas e por isso dotadas de objectividade. Pela “impossibilidade do social” entendo… a afirmação da impossibilidade de toda a “objectividade”… Em grande medida, a sociedade apresenta-se, não como uma ordem objectiva e harmoniosa, mas como um conjunto de forças divergentes que não parecem obedecer a nenhuma lógica unificada ou unificante. Como é que esta experiência do fracasso da objectividade pode ser compatibilizada com a afirmação da objectividade do real? (Ernesto Laclau)12.

 
 
 
 
 
 
12 Ernesto Laclau, “Building a New Left: An Interview with Ernesto Laclau”, Strategies, no 1 (Outono 1988), 15.

As pessoas comuns silenciosas — as que “nunca se exprimiram”, a não ser que lhes tenha sido dada a oportunidade de comunicar os seus pensamentos por aquele que as veio redimir — são constantemente chamadas a representarem o mundo real. São o referente fundamental do social, por isso basta apontar a câmara na sua direcção, mostrar a sua pobreza (industrializada), ou contextualizar e empacotar os seus estilos de vida estranhos para o grande público “daqui” (sempre pronto a comprar e doar) para se entrar no reino consagrado do moralmente justo, ou do social. Por outras palavras, quando reina o chamado “social”, não se questiona a forma como eles(/nós) ganham visibilidade nos meios de comunicação, como é dado sentido às suas(/nossas) vidas, como a sua(/nossa) verdade é interpretada ou como a verdade é estabelecida para eles(/nós) e apesar deles(/nós), como a representação se relaciona com ou é ideologia, como a hegemonia mediática prossegue a sua trajectória implacável.

Não existe cinema-vérité. Torna-se necessariamente uma mentira a partir do momento em que o realizador intervém — ou nem se pode chamar cinema (Georges Franju)13.

 
 
13 Georges Franju, in G. Roy Levin, Documentary Explorations, 119.

Quando o social é hipostasiado e consagrado como um ideal de transparência, quando ele próprio é mercantilizado como uma forma de gestão pura (melhor serviço, melhor controlo), o intervalo entre o real e a imagem, ou entre o real e o racional, definha até à irrealidade. Assim, pensar as relações de produção como o fizemos anteriormente significa revisitar continuamente a seguinte questão: como é que se produz o real (ou o ideal social da boa representação)? Em vez de nos orientarmos para ele, procurando capturar e descobrir a sua verdade como um objecto escondido ou perdido, é também importante continuar a perguntar: Como é que se determina a verdade? O castigo do realismo é ser sobre a realidade e ter de se preocupar para sempre não com ser “belo”, mas com estar certo (John Grierson)14. Inicialmente, os pioneiros do documentário insistiram que ele não era Jornalismo, mas Arte (uma “forma artística nova e vital”, como proclamou Grierson). Que a sua essência não era a informação (como no caso das “centenas de filmes institucionais idênticos destinados a educar os trabalhadores”), a reportagem, ou o filme de actualidades, mas algo próximo de “um tratamento criativo da realidade” (na conhecida definição de Grierson). Se Joris Ivens fez os mais belos documentários que alguém já viu, isso é porque os seus filmes são compostos e trabalhados, mas têm um ar de verdade. Claro que a parte documental é verdadeira, mas em redor das secções documentais há uma interpretação. Então não se pode falar de cinema-vérité (Georges Franju)15.

 
 
 
14 Grierson, Grierson on Documentary, 249.
 
 
 
15 Georges Franju, in Levin, Documentary Explorations, 119.

O documentário pode ser antiestético, como alguns ainda afirmam na senda do pioneiro britânico, mas ainda assim defende-se que é uma arte, embora uma arte nos limites da factualidade. (A interpretação, por exemplo, não é vista como constituindo o próprio processo de documentar e tornar acessível a informação; pelo contrário, é entendida como a margem que rodeia um centro dado e intocado, que seria a “parte documental” ou “secção documental”, segundo Franju.) Quando, no mundo da reificação, a verdade é confundida com os factos, qualquer uso explícito das qualidades mágicas, poéticas ou irracionais próprias do meio cinematográfico teria de ser excluído a priori como não factual. Não é tanto uma questão de identificar — por mais ilusório que isto seja — o que é inerentemente factual ou não num corpo de técnicas cinematográficas pré-existentes, mas de respeitar as convenções do naturalismo no cinema. Na realidade dos filmes-fórmula, só as técnicas validadas estão correctas, as outras estão de facto erradas. Os critérios baseiam-se todos no seu grau de invisibilidade na produção de sentido. Assim, filmar a uma velocidade diferente dos habituais 24 fotogramas por segundo (a velocidade necessária para a sincronia labial) é muitas vezes condenado como forma de manipulação, insinuando-se com isso que a manipulação tem de ser discreta — ou seja, só é aceitável quando não é facilmente perceptível pelo “público real”. Embora toda a realização seja uma questão de manipulação — quer “criativa”, quer não — mais uma vez todos os que apoiam a lei decretam impreterivelmente qual técnica é manipulativa e qual supostamente não é (e este julgamento é certamente feito de acordo com o grau de visibilidade de cada uma). Um documentário é filmado com três câmaras: 1) a câmara no sentido técnico; 2) a mente do cineasta; 3) os padrões genéricos do documentário, que são fundados nas expectativas do seu público. Por esta razão, não se pode simplesmente dizer que o documentário retrata factos. Ele fotografa factos isolados e a partir deles monta um conjunto coerente de factos, de acordo com três esquemas divergentes. Quaisquer factos ou contextos factuais restantes são excluídos. O tratamento ingénuo da documentação representa assim uma oportunidade única de inventar fábulas. No fundo, o documentário não é mais realista do que um filme de ficção (Alexander Kluge)16.

 
 
 
 
 
 
 
16 Alexander Kluge, Alexander Kluge: A Retrospective, The Goethe Institutes of North America, 1988

A realidade é mais fabulosa, mais enlouquecedora, mais estranhamente manipuladora do que a ficção. Compreender isto é reconhecer a ingenuidade do desenvolvimento de uma tecnologia cinematográfica que promova o “acesso” cada vez menos mediado à realidade. É não se deixar enganar pela pobreza de “uma verdade expressa tal como foi pensada”, como lamentou Benjamin, e perceber porque é que os filmes de ficção progressivos se interessam e prestam constantemente homenagem às técnicas do documentário. Estes filmes recorrem ao “efeito documentário”, jogando com a expectativa do espectador de modo a “inventar fábulas”. (Exemplos comuns deste efeito incluem: a impressão de participar num momento da realidade aparentemente verdadeiro e captado à revelia do sujeito filmado; o sentido de urgência, imediatismo e autenticidade conferido pela instabilidade da câmara portátil; a aparência de filme de atualidades da imagem com grão, e o carácter de testemunho oral da entrevista directa — para mencionar apenas alguns.)

O documentário pode então tornar-se facilmente um “estilo”: já não constitui um modo de produção ou uma atitude perante a vida, mas revela-se apenas como um elemento da estética (ou antiestética) — o que tende a ser, de qualquer modo, no melhor dos casos e sem o reconhecer, quando dentro dos seus próprios limites factuais, se reduz a uma mera categoria, ou a um conjunto de técnicas persuasivas. Muitas destas técnicas tornaram-se hoje tão “naturais” à linguagem da televisão que “passam despercebidas”. Por exemplo: a técnica do “testemunho pessoal” (uma estrela aparece no ecrã a publicitar o uso de um certo produto); a técnica da “pessoa comum” (um político come cachorros quentes em público); a técnica do “rebanho” (a qual passa a mensagem de que “todos o fazem, porque não você?); ou a técnica de “controlar as cartas” (na qual os preparativos de uma “sondagem” mostram que uma certa marca de produto é a mais popular entre os habitantes de uma determinada zona)17.

 
 
 
 
 
 
17 John Mercer, An Introduction to Cinematography (Champaign, IL: Stipes Publishing Co, 1968), 159.

Tens de recriar a realidade porque a realidade foge; a realidade nega a realidade. Primeiro tens de interpretá-la, ou recriá-la… Quando faço um documentário, tento dar ao realismo um aspecto artificial… Sinto que a estética de um documento vem do seu aspecto artificial… deve ser mais belo do que o realismo, e por isso deve ser composto… para ganhar outro sentido (Franju)18. Um documentário consciente do seu próprio artifício é aquele que se mantém sensível ao fluxo entre facto e ficção. Não se esforça por ocultar ou excluir o que é normalizado como “não factual”, uma vez que compreende a dependência mútua entre o realismo e a “artificialidade” no processo de realização. Ele reconhece a necessidade de compor a vida (a partir dela) ao vivê-la ou fazê-la. O documentário reduzido a um mero veículo de factos pode ser usado para defender uma causa, mas não constitui uma causa. Daí a perpetuação do sistema bipartido que opõe o conteúdo à forma.

 
 
18 Georges Franju, in G. Roy Levin, Documentary Explorations, 121, 128.

Compor nem sempre é sinónimo de ordenar-para-persuadir, assim como dar ao documento filmado outro sentido, outro significado, não significa necessariamente distorcê-lo. Se não se quer suprimir os paradoxos e complexidades da vida, a questão dos graus e nuances é incessantemente crucial. Por isso, o sentido só pode ser político quando não se deixa estabilizar facilmente e quando não depende de uma fonte única de autoridade, mas antes a esvazia ou descentraliza. Assim, mesmo quando esta fonte é referida, surge como uma entre muitas outras, simultaneamente plural e profundamente singular. Na sua insistência em ter sentido a qualquer custo, muitas vezes o “documentário” esquece-se da forma como surge e que a estética e a política se mantém inseparáveis na sua constituição. De facto, desde que não seja confundida com uma mera técnica de embelezamento, a estética permite-nos experienciar a vida de forma diferente, ou, como diriam alguns, dar-lhe “outro sentido”, permanecendo em sintonia com as suas derivas e mudanças.

 
 
Tem de ser possível representar a realidade como a ficção histórica que é. A realidade é um tigre de papel. O indivíduo encontra-a, como destino. Não é destino, contudo, mas o resultado do trabalho de várias gerações de seres humanos, que sempre quiseram e continuam a querer algo completamente diferente. Em vários sentidos, a realidade é simultaneamente real e irreal (Alexander Kluge)19.

 
 
 
 
 
19 Alexander Kluge, Alexander Kluge: A Retrospective, 6.

 
Das suas descrições às suas ordenações e reordenações, a realidade em movimento pode ser intensificada ou empobrecida mas nunca é neutra (ou seja, objectivista). “O documentário na sua versão mais pura e poética é uma forma em que os elementos que usamos são os elementos reais.”20 Porquê sequer usar o qualificativo “artificial”, por exemplo? Haverá no processo de produzir um “documento” um aspecto artificial que possa ser seguramente separado do aspecto verdadeiro (excepto com um propósito analítico — ou seja, ao serviço de um outro “artifício” da linguagem?) Por outras palavras, será um enquadramento mais fechado da realidade mais artificial do que um mais aberto? A noção de “estranhamento” e de reflexividade permanecerá um mero mecanismo de distanciamento enquanto a divisão entre “artifício textual” e “atitude social” exercer o seu poder21. O “social” mantém-se inquestionado, a história continua a ser resgatada, enquanto a soberania do sujeito socio-historicizante é protegida. Preservado o status quo do sujeito criador/consumidor, o objectivo é corrigir “erros” (o falso) e construir uma perspectiva alternativa (apresentada como esta-é-a-verdadeira ou a-minha-é-a-mais-verdadeira versão da realidade). Ou seja, trata-se de substituir uma fonte de autoridade não reconhecida por outra, mas sem questionar a própria constituição da autoridade. Assim, o novo texto socio-histórico reina despoticamente como mais um texto centrado no senhor, pois contribui involuntariamente para perpetuar a posição ideológica do Senhor.

 
20 Lindsay Anderson, Alexander Kluge: A Retrospective, 66.
 
 
21Esta distinção motiva o argumento de Dana Polan em “A Brechtian Cinema? Towards a Politics of Self-Reflexive Film”, ed. B. Nichols, Movies and Methods, vol. 2 (Los Angeles: University of California Press, 1985), 661-672.

Quando o textual e o político nem se separam um do outro nem colapsam simplesmente num qualificativo único, a prática da representação também não pode ser tida como garantida nem simplesmente rejeitada como ideologicamente reaccionária. Ao colocar a representação sob escrutínio é mais provável que a teoria-prática textual tenha ajudado a abalar as ideologias enraizadas ao trazer os mecanismos do seu funcionamento para primeiro plano. Ela torna possível a diferenciação fundamental entre a crítica autoritária e as análises e investigações rigorosas (incluindo da própria actividade analisadora/investigadora). Para além disso, contribui para o questionamento de abordagens reformistas “alternativas” que nunca se afastam muito da linhagem do humanismo centrado no homem branco. Apesar do seu explícito engajamento sociopolítico, estas abordagens permanecem inócuas — ou seja, “enquadradas”, e assim nem suficientemente sociais nem políticas.

A realidade foge, a realidade nega a realidade. No fundo, fazer um filme é uma questão de “enquadrar” a realidade no seu curso. No entanto, também pode ser o lugar onde a função referencial da imagem/som cinematográficos não é simplesmente negada, mas pensada nos seus princípios operativos e questionada na sua identificação autoritária com o mundo fenomenal. Nas tentativas de suprimir a mediação do dispositivo cinematográfico e o facto de a linguagem “se comunicar a si mesma” esconde-se sempre o que Benjamin designou de concepção “burguesa” da linguagem. Qualquer estratégia revolucionária deve questionar a representação da realidade… para que se produza uma separação entre ideologia e texto (Claire Johnston)22.

 
 
22 Claire Johnston, “Women’s Cinema as Counter-Cinema”, in ed. B. Nichols, Movies and Method, vol. 1 (Los Angeles: University of California Press, 1976), 215.

Negar a realidade do cinema ao reivindicar (capturar) a realidade é ficar “na ideologia” — i.e. cair na confusão (deliberada ou não) entre a realidade cinematográfica e fenomenal. Ao condenar a auto-reflexividade como puro formalismo ao invés de questionar as suas diversas realizações, esta ideologia pode “passar despercebida”, mantendo as suas operações invisíveis e servindo o objectivo do expansionismo universal. Esta aversão à auto-reflexividade vai de mãos dadas com a sua apropriação generalizada como dispositivo formalista progressivo no cinema, uma vez que ambas se esforçam por reduzir a sua função a algo de decorativo e inofensivo. (Por exemplo, tornou-se comum ouvir comentários como “Um filme é um filme”, ou “Isto é um filme sobre um filme.” É cada vez mais difícil lidar com este tipo de afirmações, pois elas podem tornar- se presa fácil das suas próprias fórmulas e técnicas.) Para além disso, a reflexividade, por vezes equiparada à visão pessoal, é outras vezes defendida como rigor científico.

Dois homens estavam a discutir a produção conjunta de vinho. Um deles disse ao outro: “Tu forneces o arroz e eu a água.” O segundo perguntou: “Se sou eu a dar o arroz todo, como é que distribuímos o produto final?” O primeiro respondeu: “Serei absolutamente justo. Quando o vinho estiver pronto, cada um recebe exactamente aquilo que deu — eu extraio o líquido com um sifão e tu podes ficar com o resto.”23
“Joint Production”, Wit and Humor from Old Cathay24

 
 
 
23 Wit and Humor, trad. Jon Kowallis (Beijing: Panda Books, 1986), 98.

Uma das áreas do documentário que se mantém mais resistente à realidade do cinema enquanto cinema é aquela conhecida como cinema antropológico. O material etnográfico filmado, que se pensava “reproduzir a percepção natural”, renunciou à sua autoridade para reproduzir e passou a pretender fornecer “dados” adequados à “amostragem” da cultura. A pretensão à objectividade pode já não valer em muitos círculos antropológicos, mas a sua autoridade será muito provavelmente substituída pela noção sacrossanta do “científico”. Assim, o registo e recolha de dados e testemunhos pessoais emergem como o escopo limitado do “filme etnográfico”. O que torna um filme antropológico ou científico é, tautologicamente, o seu “esforço académico [para] respectivamente documentar e interpretar de acordo com padrões antropológicos” 24 . Não meramente etnográficos ou documentais, a definição especifica incontestavelmente, mas académicos e antropológicos. Uma obsessão científica fundamental está presente em todas as tentativas de demarcar os territórios da antropologia. Para ser cientificamente válido, um filme depende da intervenção científica do antropólogo — apenas se aderir ao corpo de convenções estabelecidas pela comunidade de antropólogos acreditados pela sua “disciplina” é que um filme pode habilitar-se a esta classificação e passar como “esforço académico”.

 
 
24 Henk Ketelaar, “Methodology in Anthropological Filmmaking: A Filmmaking Anthropologist’s Poltergeist?”, Methodology in Anthropological Filmmaking, ed. N. Bogaart e H. Ketelaar (Gottingen: Herodot, 1983), 182.

O mito da ciência impressiona-nos. Mas que não se confunda a ciência com o seu escolaticismo. A ciência não encontra verdades nenhumas, quer matematizadas, quer formalizadas; descobre factos desconhecidos que podem ser interpretados de mil maneiras diferentes (Paul Veyne)25. Um dos argumentos comuns apresentados pelos antropólogos para validar o uso prescritivamente instrumental do cinema e das pessoas é a rejeição de todas as obras de “antropólogos não-profissionais”, ou “etnógrafos amadores”, com o pretexto de que não são “antropologicamente esclarecidos”, logo, não têm “nenhuma relevância teórica do ponto de vista antropológico”. Defender uma lógica de auto-promoção tão descarada para instituir uma forma enfadonha e rotineira de cinema (para citar mais uma vez a expressão de Marcorelles) é também — através da tarefa antropológica primordial de “recolha de dados” para o conhecimento humano — uma tentativa de contornar o que é conhecido como “paradigma de salvamento” e as questões implicadas na implementação “científica” da apropriação ocidental do mundo26. Quanto mais forte a insegurança da antropologia em relação ao seu próprio projecto, mais forte a sua vontade de sustentar um modelo normativo e mais aparentemente pacífica a sua tendência para se manter na ignorância.

25 Paul Veyne, Did the Greeks Believe in Their Myths? An Essay on the Constitutive Imagination, trad. P. Wissing (Chicago: University of Chicago Press, 1988), 115.
 
 
 
 
26 Ver James Clifford, “Of Other Peoples: Beyond the ‘Salvage Paradigm'”, Discussions in Contemporary Culture, ed. Hal Foster (Seattle: Bay Press, 1987), 121-130.

No terreno santificado da antropologia, todo o cinema é reduzido a uma questão de metodologia. Nele demonstra-se que os filmes antropológicos vão mais longe do que os filmes etnográficos, já que, por exemplo, não mostram apenas actividades a serem realizadas, mas explicam também a “relevância antropológica” dessas atividades (relevância que, apesar do qualificativo disciplinar “antropológico” é identificada, na prática, com o sentido dado pelos próprios nativos). Como é óbvio, no processo da fixação de sentido nem todas as explicações são válidas. É neste momento que entra o papel do antropólogo especialista e que as metodologias precisam de ser concebidas, legitimadas e implementadas. De facto, se uma explicação não- profissional é aqui rejeitada, não é tanto porque lhe falte discernimento ou fundamento teórico, mas porque escapa ao controlo antropológico, isto é, falta-lhe o selo de aprovação da ordem antropológica. Em nome da ciência, faz-se uma distinção entre informação fiável e não fiável. As explicações antropológicas e não antropológicas podem partilhar o mesmo tema, mas diferem na forma como produzem sentido. Os conceitos não fiáveis são aqueles que não obedecem às regras da autoridade antropológica, as quais o estudioso Evans-Pritchard descreve habilmente como um mero “hábito científico de pensamento”27. A ciência definida como a abordagem mais apropriada ao objecto de investigação serve de bandeira a todas as tentativas científicas para promover o papel paternalista do Ocidente como sujeito de conhecimento e a sua historicidade do Mesmo. Tal como nós, hoje o Ocidente reconhece que a via da Verdade passa por muitos caminhos para além da lógica aristotélica-tomista ou da dialética hegeliana. Mas as ciências sociais e humanas também devem ser descolonizadas (E. Mveng)28.

 
 
 
 
 
27 Ver Theories of Primitive, Oxford: Clarendon Press, 1980.
 
28 E. Mveng, “Recents developpements de la theologie africaine,” Bulletin of African Theology, vol. 5, no 9. Citado em V. Y. Mudimbe, The Invention of Africa. Gnosis, Philosophy and the Order of Knowledge (Bloomington: Indiana University Press, 1988), 37.

Na sua busca cientifista de “criar sentido”, a antropologia reactiva constantemente as relações de poder inscritas nos discursos confiantes do Senhor sobre Si Próprio e sobre o Seu Outro, assim contribuindo para os movimentos centrípeto e centrífugo que caracterizam sua disseminação global. Com os diversos desafios colocados hoje ao próprio processo de produzir uma interpretação “científica” da cultura, assim como de tornar possível o conhecimento antropológico, os membros visualmente orientados desta comunidade encontraram uma posição epistemológica na qual a noção de reflexividade é geralmente reduzida a uma questão de técnica e método. Associada a uma forma de auto-exposição comum no trabalho de campo, por vezes é discutida como auto- reflexividade, outras vezes é condenada como idealismo individualista a precisar urgentemente de ser controlado se se quiser evitar que o criador individual assuma maior importância do que a comunidade científica ou as pessoas observadas. Assim, “ser reflexivo é praticamente sinónimo de ser científico”29.

 
 
 
29 Jay Ruby, “Exposing Yourself: Reflexivity, Anthropology and Film,” Semiotica, vol. 30, no 1-2 (1980), 165.

São muitas as razões que sustentam esta afirmação, mas há uma que a atravessa apesar de si própria: enquanto o realizador seguir uma série de técnicas “reflexivas” concebidas com o propósito de expor o “contexto” de produção, e enquanto o fizer de forma metódica e metodológica, pode estar seguro de que a “reflexividade” é elevada ao estatuto de rigor científico. Estas técnicas reflexivas incluiriam a inserção de uma narrativa verbal ou visual sobre o antropólogo, a metodologia adoptada e as condições de produção — ou seja, todos os meios convencionais de validação de um texto antropológico através da prática disciplinar de notas introdutórias e de rodapé e do conceito totalitário da apresentação de pré-produção. Os que rejeitam esta lógica fazem-no pensando na “comunidade de cientistas”, cujo juízo colectivo deveria ser a única e verdadeira forma de reflexão (a validação individual de uma obra só pode ser suspeita, já que “ignora o desenvolvimento histórico da ciência”). Nestas tentativas constantes de impor a antropologia como (uma) disciplina e de recentrar a representação dominante da cultura (apesar de todas as mudanças de metodologias), o que parece ser estranhamente suprimido na noção de reflexividade aplicada ao cinema é a sua prática enquanto processo para evitar que o sentido se reduza ao que é dito ou mostrado — enquanto investigação das relações de produção. Um processo que questiona a própria representação, realçando a realidade da experiência do cinema e o papel fundamental que a realidade desempenha nas vidas dos espetadores.

A não ser que uma imagem se desloque do seu estado natural, ela não adquire relevância. O deslocamento causa a ressonância (Shanta Gokhale)30.
Depois de se entregar voluntariamente, Zheng Guang, pirata activo na costa de Fujian, deveria receber um cargo oficial (em troca da sua rendição). Quando um superior lhe pediu para escrever um poema, Zheng respondeu com um verso cómico: “Quer sejam civis ou militares, os oficiais são todos iguais. Os oficiais assumiram os seus cargos antes de se tornarem ladrões, mas eu, Zheng Guang, era ladrão antes me tornar oficial.”
“The Significance of Officialdom”,
Wit and Humor from Old Cathay31

 
30 Shanta Gakhale, in The New Generation. 1960-1980, ed. Uma de Cunha (Nova Deli: The Directorate of Film Festivals, 1981), 114.
 
31 Kowallis, Wit and Humor, 39.

Como fechamento estético ou velha jogada relativizante no processo de absolutização de sentido, a reflexividade revela-se criticamente in/significante quando serve apenas para afinar ou promover a acumulação de conhecimento. Nenhum ir-além, nenhum outro-lugar-aqui parece possível se a reflexão sobre nós mesmos não implicar simultaneamente a análise de formas estabelecidas do social que definem os nossos limites. Assim, conduzir o eu a um abismo não constitui nem uma auto-restrição moralista (para aperfeiçoamento futuro), nem uma tarefa crítica que humaniza o eu descodificador, sem nunca questionar as próprias noções de eu e de descodificador. Intocado na sua posicionalidade e urgência de decretar sentido, o eu concebido como chave e mediador transparente tenderá a transformar a responsabilidade em liberdade. Liberdade de nomear, como se o sentido se desse a ser decifrado sem mediação ideológica. Como se especificar um contexto só pudesse resultar na finalização do que é mostrado ou dito. Como se nomear pudesse travar o processo de nomeação — o tal abismo da relação do eu com o eu.

Esta consideração do eu ultrapassa necessariamente a preocupação com os erros humanos, pois não pode deixar de incluir o problema inerente à representação e comunicação. Radicalmente plural no seu alcance, a reflexividade não é uma mera questão de rectificação e justificação (subjectivando). O que é accionado na sua prática são as ligações auto-geradas entre diferentes formas de reflexividade. Deste modo, um sujeito que aponta para si próprio/a como sujeito-em- processo, ou uma obra que mostra as suas propriedades formais ou constituição como obra só pode desestabilizar o nosso sentido de identidade — a distinção familiar entre o Mesmo e o Outro, pois este último já não é mantido numa reconhecível relação de dependência, derivação ou apropriação. O processo de auto-constituição é também aquele em que o eu vacila e perde as suas certezas. O paradoxo deste processo reside na sua instabilidade fundamental, uma instabilidade que gera a desordem inerente a toda a ordem. O “centro” da representação é o intervalo reflexivo. É o lugar onde o jogo dentro do quadro textual é um jogo sobre esse próprio quadro, logo, nos limites do textual e extratextual, em que o posicionamento interno corre constantemente o risco de des- posicionamento, e em que a obra, nunca liberta de contextos históricos e sociopolíticos, nem inteiramente sujeita a eles, só pode ser ela própria se arriscar constantemente não ser nada.

Uma obra que reflecte sobre si própria oferece-se infinitamente como apenas obra… e vazio. O seu olhar é simultaneamente um impulso que leva a obra a desintegrar-se (a regressar à sua qualidade de não-obra) e uma dádiva maior à sua constituição, já que através dela a obra é liberta da tirania de sentido, assim como da omnipresença de um sujeito de sentido. Soltar as amarras no preciso momento em que elas são mais fortes é permitir à obra viver e perdurar independentemente das ligações pretendidas, comunicando-se a si mesma, ou, como em Benjamin, “o ego é um texto” — precisamente “qualquer coisa que é necessário construir”32. O olhar de Orfeu… é o impulso do desejo que estilhaça o destino e a preocupação da canção, e nesta decisão inspirada e despreocupada alcança a origem e consagra a canção (Maurice Blanchot)33

 
 
32 Susan Sontag, na Introdução a Benjamin, Rua de Sentido Único, 15.
33 Maurice Blanchot, The Gaze of Orpheus and Other Literary Essays, ed. P. Adams Sitney, trad. L. Davis, Barrytown (Nova Iorque: Station Hill Press, 1981), 104.

O sentido não pode ser imposto nem negado. Embora cada filme seja em si mesmo uma forma de ordenar e fechar, cada fechamento pode desafiar o seu próprio fechamento, abrindo para outros fechamentos, assim realçando o intervalo entre aberturas e criando um espaço no qual o sentido permanece fascinado por aquilo que lhe escapa e o excede. A necessidade de abandonar a noção de intencionalidade que domina a questão do “social”, assim como a de criatividade não deve, portanto, ser confundida com o ideal de não intervenção, em relação ao qual o realizador, tentando tornar-se o mais invisível possível no processo de produzir sentido, promove a subjectividade enfática à custa da investigação crítica, mesmo quando a intenção é mostrar e condenar a opressão. É uma mistificação idealista acreditar que a “verdade” pode ser capturada pela câmara ou que as condições de produção de um filme (por exemplo, um filme feito colectivamente por mulheres) podem por si mesmas reflectir as suas condições de produção. Isto é mera utopia: um novo sentido tem de ser fabricado dentro do texto do filme… O que a câmara efectivamente capta é o mundo “natural” da ideologia dominante (Claire Johnston)34.

 
 
 
34 Claire Johnston, “Women’s Cinema as Counter-Cinema”, 214.

Na busca de sentido totalizante ou na ânsia de conhecer-por-conhecer, o pior sentido é a ausência de sentido. Uma missionária branca sediada numa remota aldeia africana classifica a sua tarefa de forma simples e convicta: “Estamos aqui para ajudar as pessoas a darem sentido às suas vidas.” A posse é monotonamente circular nas suas exigências de dar e receber. É uma visão monolítica do mundo, cuja irracionalidade se expressa no imperativo de dar e significar, cuja irrealidade se manifesta na necessidade de exigir que os constructos visuais e verbais produzam sentido até ao seu mais ínfimo detalhe. O Ocidente humedece tudo com sentido, como uma religião autoritária que impõe o baptismo a populações inteiras (Roland Barthes)35. No entanto, esta ilusão é real; ela tem a sua própria realidade, na qual o sujeito de Conhecimento, o sujeito de Visão, ou o sujeito de Sentido continua a mobilizar relações de poder estabelecidas, assumindo-se como reserva básica de referência na busca totalitária de referente — esse referente verdadeiro que se encontra lá fora na natureza, envolto em escuridão, aguardando pacientemente ser revelado e decifrado correctamente: ser redimido. Talvez uma imaginação que vá de encontro à textura da realidade seja aquela capaz de jogar com a ilusão em causa e o poder que esta exerce. A produção de uma irrealidade sobre a outra e o jogo do nonsense (que não é um mero sem-sentido) com o sentido pode ajudar então a aliviar o referente básico da sua ocupação, já que a situação actual de investigação crítica parece constituir menos um ataque à ilusão da realidade do que um deslocamento e esvaziamento do estabelecimento da totalidade.

 
 
 
35 Roland Barthes, Empire of Signs, trad. R. Howard (Nova Iorque: Hill & Wang, 1982), 70.

 
1 Capítulo retirado de Trinh Minh-ha, When the Moon Waxes Red: Representation, Gender, and Cultural Politics (Nova Iorque: Routledge, 1991), 29‒50
Uma versão mais curta deste artigo foi publicada com o título “Documentary Is/Not a Name”, October, no 52 (Verão 1990), 76‒98.
 
Traduzido do inglês por Ana Macedo.
first published in Cinema-Journal of Philosophy and the Moving Image 12, “Images of the Real” 
Este trabalho é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia no âmbito do projecto UIDB/00183/2020.